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Turma Da Noite

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

3.º Grupo de Casos Práticos de Direito Penal I

Grupo II
Questões fundamentais a analisar[1]

Pergunta n.º 1

Nesta questão estava em causa um problema de interpretação. Colocava-se ainda um problema de concurso, que implicava a necessidade de se optar pelo concurso de normas ou pelo concurso de crimes, tendo como pano de fundo o respeito pelo princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
A conduta de António, ao usar a beca que a sua mãe lhe havia costurado para se mascarar no Carnaval anterior, fazendo-se passar por juiz, com essa intenção, é subsumível no tipo de crime de abuso de traje próprio de função do serviço público, p. e p. no n.º 1 do artigo 307.º. A beca é o traje privativo dos juízes, ou seja, de pessoas que exercem autoridade pública, enquanto titulares de órgãos de soberania[2]. Trata-se de um entendimento de Autoridade que não se limita às autoridades de polícia referidas na Lei de Segurança Interna, Lei n.º 20/87, de 12 de Junho (artigo 15.º). Assim, a conduta de António também se subsume no nº 2 do artigo 307.º.
Há um concurso aparente entre as normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 307.º, resolvido através da regra da especialidade. Na verdade, n.º 2 do artigo 307.º é uma norma especial em relação ao n.º 1 do mesmo preceito, porque contém todos os elementos típicos que o integram, sendo, no entanto, individualizado pela circunstância de o sinal, designação ou traje ser privativo de pessoa que exerça autoridade pública. Deste modo, a norma especial prevalece sobre a norma geral.
A conduta de António pode também subsumir-se no crime de usurpação de funções, p. e p. na alínea a) do artigo 358.º, na medida em que António, sem para tal estar autorizado, exerceu funções de funcionário, arrogando-se expressamente essa qualidade. À luz da alínea a) do n.º 1 do artigo 386.º, no amplo conceito de funcionário civil, estão também abarcados os Magistrados Judiciais. Só assim se compreende que na alínea c) do mesmo preceito se abarque em tal conceito quem exerça, mesmo que provisória ou temporariamente, função jurisdicional[3]. Do mesmo modo, quando a alínea a) do n.º 3 do artigo 386.º se refere a Magistrados para efeitos dos artigos 372.º a 374.º, a propósito dos crimes de corrupção, está a equiparar a funcionários os Magistrados que exerçam funções no âmbito da União Europeia, independentemente da respectiva nacionalidade. Em suma: o artigo 386.º abarca no conceito de funcionários os juízes.
Quanto ao facto de se subsumir a conduta de António na alínea a) e não na alínea b) do artigo 358.º, tal deve-se à circunstância de a alínea b) se reportar, especificamente, ao chamado “exercício ilegal de profissão”, compreendendo a prática de actos “próprios”, “privativos”, “exclusivos” de uma profissão[4], enquanto a alínea a) do mesmo preceito assume um carácter mais abrangente.
Mais uma vez, por razões de ordem valorativa, deve afastar-se a possibilidade de concurso efectivo de crimes, porque o crime do artigo 307.º foi instrumental e acompanhante típico do crime dominante do artigo 358.º. Assim, há um concurso de normas entre o n.º 2 do artigo 307.º, e a alínea a) do artigo 358.º, resolvido por consunção, consumindo a usurpação de funções, enquanto crime principal, o abuso de traje (regra axiológica). Na verdade, o que António quer é presidir à audiência, exercer as funções de um juiz, sendo o uso da beca um meio de lograr atingir o seu objectivo.
Como o crime dominante de usurpação de funções é punido com uma pena mais grave que o crime dominado de abuso de traje (aquela é punida com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, enquanto este último é sancionado com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias – regra quantitativa), a consunção diz-se pura, na medida em que prevalece o crime com um campo de valoração maior e com uma pena mais grave.
No que respeita ao crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. no artigo 369.º, nunca poderia o mesmo ter-se por verificado em relação a António, porque se trata de um crime específico, ou seja, de um crime que só pode ser praticado por quem detém determinadas qualidades, no caso, por quem seja funcionário, nos termos do artigo 386.º, com as funções especificadas no n.º 1 do citado preceito legal, e António não era funcionário com essas funções.
Já o crime de usurpação de funções pressupõe precisamente o contrário, isto é, que o agente não seja funcionário com as funções indevidamente exercidas, pelo que os artigos 358.º e 369.º estão em uma relação de alternatividade, no sentido de o mesmo comportamento, subjectivamente caracterizado, não poder subsumir-se, concomitantemente, em ambas as disposições legais citadas.
Em conclusão, António seria apenas punido pelo crime de usurpação de funções, p. e p. na alínea a) do artigo 358.º.

Pergunta n.º 2

Nesta questão está em causa o âmbito de aplicação espacial da lei penal.
O facto foi praticado no estrangeiro, concretamente em Espanha, por ser esse tanto o lugar da conduta como o da verificação do resultado (artigo 7.º).
Levantava-se por isso a questão de saber se a lei penal portuguesa podia ser aplicada a factos praticados fora do território nacional (artigo 5.º).
Por verificados os requisitos da alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º que consagra o princípio da nacionalidade (personalidade activa), a lei penal portuguesa teria aplicação. Todavia, como António já havia sido julgado e condenado em Espanha, estar-se-ia perante uma potencial restrição à aplicação da lei penal portuguesa (artigo 6.º, n.º 1). Não obstante, uma vez que António se furtou ao cumprimento integral da pena a que havia sido condenado em Espanha, poderia ser julgado à luz da lei penal portuguesa, sendo necessário apurar se a lei penal espanhola era concretamente mais favorável ao agente (artigo 6.º, n.º 2), hipótese que, a verificar-se, levaria à aplicação de lei penal estrangeira por um tribunal português.Na ausência de elementos que permitissem determinar qual das leis penais era mais favorável, a resposta à pergunta seria no sentido de admitir a aplicação da lei penal portuguesa a António.

[1] Quando outra indicação não resulte do texto, os artigos citados são do Código Penal (CP).
[2] Neste sentido, cf. MONTEIRO, Cristina Líbano, “Anotação ao artigo 307.º CP” in AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial (dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, (pp. 1231-1242), p. 1237.
[3] Assim, CUNHA, J. M. Damião da, “Anotação ao artigo 386.º CP” in AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial (dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), tomo III, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, (pp. 808-823), pp. 814-815.
[4] Designadamente actos médicos. Sobre isto, cf. MONTEIRO, Cristina Líbano, “Anotação ao artigo 358.º CP” in AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial (dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, (pp. 437-449), p. 446 ss.

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